Veja-se o caso do Haiti. Há 20 anos era um país auto-suficiente em arroz, a preços razoáveis. Em 1995, o FMI impôs um plano de liberalização económica, com desarmamento alfandegário drástico. O mercado haitiano foi invadido por arroz proveniente dos Estados Unidos e altamente subsidiado. Resultado: hoje o Haiti importa 80% do arroz que consome e ao dobro do preço anterior.
Este é, por isso, um tempo para aprender lições e não as esquecer.
A primeira é que sempre esteve errado o credo desenvolvimentista assente na destruição da pequena e média agricultura de subsistência e na sua substituição pela produção intensiva para exportação. O dogma do comércio livre que, na prática, funciona como liberalização unilateral a adoptar pelos mais pobres e exportação em massa dos excedentes subsidiados pelos mais ricos só ajudou a pôr essa falência em evidência, se necessário era.
A segunda lição é que, de facto, o capitalismo não tem fronteiras. Só que, desta vez, as fronteiras que desapareceram foram as da decência mínima: se for preciso condenar milhões à fome para obter ganhos na bolsa, não há que hesitar. Sobretudo se esses ganhos forem suficientemente tentadores para o capital financeiro poder compensar as perdas do subprime.
Terceira lição: é claro que a fome exige medidas de urgência. Quando o Presidente do Banco Mundial avisa que os preços dos produtos agrícolas vão continuar a subir durante os próximos 7 anos, ele sabe que não será nunca em menos do que isso que se corrigirão as causas profundas da dinâmica galopante da vulnerabilidade alimentar no mundo, sobretudo no mundo pobre.
Mas atenção às armadilhas: foi sempre em nome da urgência – e da salvação dos pobres, pois claro – que se decretaram os choques liberalizadores, a extinção das agriculturas tradicionais e outras modernizações civilizadoras. Como é alegadamente em nome da urgência – e da salvação do planeta, pois claro – que Sócrates quer ser o campeão europeu da incorporação de bio-combustíveis nos transportes, mesmo que à custa do incentivo perverso dado – prometeu ele – a Angola e a Moçambique para serem os nossos fornecedores.
Se algo de positivo há nesta ameaça de catástrofe é ela forçar-nos a repensarmos a pequena e média agricultura como uma prioridade e não como um anacronismo. Talvez esteja na altura de percebermos que a luta pela preservação das hortas no centro das nossas cidades e a luta contra a liberalização mundial do comércio dos produtos agrícolas nos termos em que a quer a OMC não são lutas simétricas mas gémeas.
José Manuel Pureza"
José Manuel Pureza é professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e especialista em Relações Internacionais. O texto foi escrito a pedido de Daniel Oliveira (tema: a crise alimentar no mundo), publicado em Maio de 2008, para o Arrastão.
6 comentários:
Excelente texto, cheio de razão. Mais de um ano depois, completamente actual. Ou ainda mais.
Também sou uma defensora das hortas e da agricultura como uma prioridade, uma necessidade, a nossa base de sobrevivência. Já tirei uma fotos de hortas urbanas em pleno centro do Porto para um futuro "post" sobre o assunto.
Obrigada por ter trazido esse texto para aqui.
Um abraço
Manuela Araújo, tivesse eu um cantinho de terra e já seria uma agricultora urbana :) Também achei o texto excelente, é bom ver que alguns economistas estao atentos à realidade dos factos.
Apetecia-me pôr aqui um "like", como no facebook.
Aterroriza ler posts como este - e é necessário este terror, infelizmente, para não fecharmos os olhos.
Rita F., o like fica registado ;) Infelizmente, também acho que nao podemos fechar os olhos por muito que nos aterrorize, senao ficamos cegos. Só que às vezes custa a acreditar no que vemos, porque é mesmo terrivel.
Concordo em absoluto com este texto. Sou oriunda de uma zona do país que em tempos foi apelidada de "celeiro de Portugal"...hoje esse "celeiro" está a ser dividido em parcelas e a ser vendido a privados para se construirem condominios e campos de golfe estremamente necessários (?!?)após a construção do novo aeroporto. E eu, não percebo porque é que importamos os produtos agricolas da europa quando as nossas terras e o nosso clima são dos melhores para a agricultura, o Ribatejo e o Alentejo deram mostras no pré 25 de Abril que produziam para "sustentar" o país. Enfim, mas a globalização e a União europeia vieram dizer que não e nós deixamos de ser produtores em larga escala, depois resolveram acabar com os pequenos e médios produtores e em tudo isto o que me choca é vendermos as nossas terras férteis aos estrangeiros, como espanhois e holandeses, estes produzirem cá, enviarem para os seus países de origem e nós (estado) comprarmos (?!?)...País de hipocritas!!
Lizard King, conheco casos como os que descreves e é muito triste. O estado do país e das mentalidades é muito muito triste. A mudanca é urgente, as pessoas têm que lutar mais pelos seus direitos, têm que se envolver mais na comunidade, têm que incentivar quem vai contra a corrente económica egoista e interesseira dos politicos no poleiro. Tens toda a razao!
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