(foto daqui)
Não tenho ferro de engomar. Nem tenho tábua de passar a ferro. Deixei isso tudo em Portugal. Ou seja, há mais de 6 anos que não toco em vapores que não sejam os das saunas. Descobri que, não trabalhando numa empresa, era possível viver sem ferro de engomar. Estico sempre tudo bem esticadinho antes de estender na corda (que aqui é um daqueles estaminés que se abrem e se deixam no meio do quarto até a roupa secar). Sempre que vou a casa (Portugal é a minha casa) ouço histórias de engomar que me deixam a pensar. Histórias de engomar são algumas das minhas preferidas, adoro perguntar e saber no que é que as pessoas passam o tempo. Sei de pessoas que passam a ferro a roupa interior, cuequinha, por cuequinha, boxer por boxer. Sei de outras que passam a ferro as toalhas turcas, aquelas que penduramos na casa-de-banho para enxugar as mãos. Sei de pessoas que lavam à mão as calças de ganga antes de as pôr na máquina-de-lavar-roupa. Põem as calças de ganga na banheira e esfregam aquilo tudo com detergente. Antes de pôr na máquina-de-lavar-roupa. Tive que repetir a frase porque é uma ideia um pouco confusa para mim.
Uma vez depois de um jantar de família, levantei-me passado um tempo para ajudar as mulheres na cozinha. Os homens ajudaram a levantar a mesa e pronto. Quando cheguei à cozinha deparei-me com o trabalho imenso que estas mulheres tinham pela frente. No vai-vem de uma cozinha atarefada e cheia de mãos, reparei na louça amontoada para lavar e ofereci-me para o fazer. Depois de lavar à mão uma pilha enorme de pratos, copos, talheres e tachos (todos detestamos os tachos), deixei-os a enxugar na pedra. Entretanto, chega a Maria com um alguidar e começa a pôr dentro tudo o que lavei. Vi-a sair da cozinha e perguntei-me se iria enxugar a louça e arrumar tudo. Desnecessário a meu ver, pois era muita louça, mais valia deixá-la secar na pedra. Já me preparava para a ajudar, mas antes pergunto à Constância "onde é que a Maria leva a louça?". Ela, meio sem jeito (ela que nunca deixou o filho homem levantar-se por ele próprio para ir buscar um copo de água), responde-me que a Maria tinha ido pôr a louça na máquina. A louça na máquina? Depois de eu lavar aquilo tudo à mão. Virei-me para o meu primo "...ehhh...a Maria foi pôr a louça que eu lavei (com detergente e esfregadissimo) na máquina. Mas que... ?!?". Ele riu-se. "Eu também não entendo, não me perguntes". Foi essa a última vez que ajudei a Maria com a louça. A Maria também passa a ferro tudo o que tenha tecido e gosta de cortar árvores e arbustos. Sempre que a visito ouço-a a instigar o marido para podar as árvores do quintal, cortar as que estão velhotas, podar as plantas, arrancar as ervas. Arrancar, cortar, podar. A palmeira já foi cortada, depois de a ouvir repetidamente dizer ao marido para o fazer. "Aquele limoeiro tem que ir à vida" é a frase que ouço agora. O limoeiro, a minha árvore preferida, vai ser o próximo. "Off with their heads", vejo-a muitas vezes vestida de rainha de copas.
Tanto a Helena (a das calças de ganga) como a Maria são mulheres que se queixam imenso do trabalho que têm com as tarefas de casa. Queixam-se permanentemente. Eu até gosto de ouvir, porque gosto delas. Os pormenores que descrevem lembram-me os meus tempos de clínica, aqueles em que ouvia as pessoas em consultório. Estão presas em historias de engomar. Historias que elas próprias criaram, para ter depois reconhecimento, alguma réstia de atenção, e uma forma de descarregar as suas contradiçoes, as suas crenças disfuncionais. Infelizmente não lhes consigo dizer que as acho umas excelentes donas de casa. Porque não acho. Acho que têm poucos interesses extras, acho que as telenovelas e os livros-light lhes fazem mal à cabeça, acho que são o produto de um traço patológico da sociedade. Só as ouço e questiono. São uma espécie de donas-de-casa daquelas que se vêm em filmes e em séries de TV. Existem. Existem e trabalham fora de casa também, a Helena ganha mais do que o marido. A Helena passa a ferro as meias todas, mesmo as meias brancas desportivas de homem. Os maridos não entendem metade do que se passa, mas têm garantido um serviço de 5 estrelas a baixo custo. E mesmo que não as considerem as companheiras de sonho (o marido da Helena há mais de três anos que não a beija) dá-lhes jeito. Não é que não goste de histórias de encantar, mas gosto mais das histórias de engomar. São mais realistas.
3 comentários:
bom post.
Ecilinha, ao ler o teu post fiquei pensativa. Será que, no fundo, o movimento anti-feminista se tratará apenas de uma auto-proteccao da classe das Júlias (nao é assim que se intitulam as novelas light de estacao de caminho-de-ferro?)?
Que descrição terrível (muito bem descrita, mas o conteúdo)... continuo a achar lamentável que mulheres inteligentes perpetuem comportamentos de quando (quase) não nos era permitido pensar.
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