segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tudo por causa da mafia russa

Ouvi "mafia russa" e de repente todos os meus radares profissionais ficaram activos. Tocou o alerta no meu cérebro. Até então, não estava a prestar muita atenção à conversa, para não dizer nenhuma, mas as palavras chave iniciaram a ignição, as luzes acenderam. Como, desculpa, o quê? Que mafia russa? E foi o desenrolar de uma história complicada, com a tal mafia russa, tribunais, contas bancárias, milhares de euros, investigação secreta em Londres, hackers, policia, enfim... um livro. Tudo encaixava, havia respostas para as nossas perguntas. Afinal, coisas incríveis acontecem às pessoas. Como nos filmes. Devias escrever um livro, foi o que lhe disse no final. O meu cérebro sussurrava-me o diagnóstico, e eu dizia o que deve ser dito para manter a normalidade. Ena que história, disse-me uma amiga mais tarde. Sim, que história. Ouço sempre histórias incríveis das pessoas com esquizofrenia, rematei. Nãooooo, não pode ser, respondeu ela. 

Ele foi dos poucos que se disponibilizou a ajudar. É bom rapaz. É até ingénuo. Lutei para me abstrair de diagnósticos. Ele é uma boa pessoa. Mais tarde queríamos celebrar a mudança de casa (aqui as mudanças fazem parte da vida) com jantar e saida. Sentámo-nos todos no restaurante e fizemos os nossos pedidos, estávamos esfomeados. Ele tinha ido a casa tomar duche. Fuma muito, logo transpira muito. Passado um tempo, já estávamos a comer, aparece ele. Vestiu a roupa que acha que lhe fica bem, cabelo penteado, cheiroso. Senta-se connosco. Fala muito, escuta pouco. Um discurso saltitante. Cheque. Que coisas extraordinárias lhe saem da boca. Gosta de ilustrar o que diz, com fotos que guarda no seu iPhone. Tem fotos de tudo. Fomos a uma festa zombie, conta, e mostra-me as fotos da festa. Tenho duas gatas, mãe e filha. Mostra-me as fotos (e vídeos) das gatas. Vai contando as histórias. Controlo-me para não fazer os irritantes cheques na minha cabeça. A noite continua. Mais coisas extraordinárias, negócios de pedras preciosas, contactos com o governo búlgaro. Cheque. Finalmente, ele explica contente que gostava de falar comigo. Pois, eu sei, tenho cara daquilo que sou. Além disso, não consigo evitar investigar, está-me no cérebro. Dou atenção ao que me parece um caso de investigação, porque tenho os radares ligados desde as palavras chave. Não hesita. Não filtra, não inibe, não esconde. Cheque. Conta tudo. Comprimidos, drogas, psicólogos, psiquiatras. Vozes. Cheque mate. 

Vozes? Sim. Espero não te ter assustado. Não, não me assustas. Desde quando? Desde os 13 anos de idade. Pois, encaixa. Posso telefonar-te para falarmos às vezes? Oh céus...tudo me passa pela cabeça. Recusar como? Mais difícil ainda ... porquê? Eu, que na minha profissão trabalho contra a discriminação, que sei o quão importante é eles terem amigos, terem amor na vida, terem apoio. Que sei que a depressão varre vidas sensíveis devido ao isolamento e preconceito. A solidão. Uma mão amiga poderia ter salvo esta vida, lembrei-me. Eu, que já conheci várias pessoas com esquizofrenia abusadas pelos outros. Que sei que o que vem nos jornais não é a realidade clínica. A prova dos nove à minha frente, a sorrir esperançoso. Não dentro das paredes de um hospital, mas num bar, entre amigos. Alguém que nos ajudou tanto, mais do que um dia. Mais houvesse, mais ajudava. Os outros, os "saudáveis", lá iam fazer um jeitinho, se desse, entre as 14h32 e as 16h10 (pena, já tenho coisas combinadas). Alguém que alegremente quer ajudar. Mesmo depois de uma noite de festa e três horas de sono. Alguém que tem opiniões sensatas sobre a sociedade, as pessoas, a politica. Inteligente (um autêntico geek). Artista, músico. Sei que me vai telefonar. Sei que o vou escutar. Toma comprimidos para a vida. Ouve vozes, so what? Eu, por exemplo, já não sei escrever português e tenho que utilizar expressões inglesas. Há quem ache isso estranho. Já para não falar nas luzes que claramente visualizo na minha cabeça quando se acendem os alertas. Está bem, respondi. Sou amiga de um esquizofrenico.

3 comentários:

Woman Once a Bird disse...

Belíssimo post.

ecila disse...

Woman Once a Bird, obrigada :-)

Anônimo disse...

intiresno muito, obrigado