segunda-feira, 26 de abril de 2010

O diabo na Igreja

Desde criança que não confio em padres. Desde que fugi do padre de Mértola como quem foge do diabo. Um padre bem falante que todos os pais adoravam e em quem confiavam. Um padre muito progressista até. Para mim foi fácil, apenas de férias, e com uma mãe nada religiosa (graças a Deus), bastou-me pular do seu colo asqueroso, fugir e continuar as minhas férias de aventuras sem pensar no assunto duas vezes. Devia ter uns 10 anos de idade. Sei que aquele padre abusava de crianças, daqueles que não se sabiam defender. Tenho a certeza absoluta. E sei que fugi porque pude, mas imagino a quantidade de crianças de Mértola que não tiveram a mesma sorte, nem a mesma força.

As pessoas esquecem-se muitas vezes do que é ser criança. Eu confiava nos adultos, para mim eles eram os cuidadores, mesmo quando não eram os meus pais. Era uma grande confusão na minha cabeça quando esses adultos demonstravam comportamentos abusivos, e acredito que a maioria das mulheres (calculo que homens também) quando crianças/adolescentes, passaram por situações perigosas ou estranhas vindas de adultos.

O que lembro foi de tentar avisar a minha mãe que aquele homem tinha tentado tocar-me em sítios menos próprios, mas ela nem ouviu. A confiança e admiração que ela tinha naquele padre era tanta que nem percebeu o que eu criança lhe tentava explicar. Porque uma criança não descreve a situação como um adulto. A criança tem vergonha, não sabe como falar de coisas destas com os pais, e pior, quando tenta avisar os pais e estes minimizam a situação, ou não escutam, a criança fecha-se. A criança diz apenas algumas palavras na esperança que o adulto adivinhe o resto, que faça perguntas, que queira saber mais. Já é difícil ter a coragem de contar, mas quando se sente rejeição ou negação do outro lado, a desilusão e o desapontamento no adulto em quem mais confia no mundo leva a criança a julgar-se sozinha e a fechar-se.

Sei que aquele padre abusou de crianças. Não preciso de dados, nem de noticias, nem de relatos, nem de dúvidas, nem de questionários. Sei porque sei mesmo. Safei-me de boa (uma bem má que me poderia ter traumatizado para sempre), mas sei que outras crianças caíram nessas mãos, crianças que viviam em Mértola, cidade extremamente religiosa, que frequentavam a catequese, mais a igreja, mais os pais que os pressionavam a comportar-se como era esperado, mais os pais que bajulavam aquele ser repugnante, que até nem parecia nada, se ouvissem bem aquela conversa que só causava admiração pela bondade e pela sabedoria.

A profissão de padre é ideal para homens com tendências pedófilas. Pedofilia não é sinal de debilidade mental. A pessoa pode ser muito bem falante, inteligente, aparentemente bondoso, ser até activo na prática religiosa do bem, como ser caridoso, bom ouvinte, etc, e mesmo assim ser pedófilo. Pedofilia é um distúrbio sexual, que como muitos outros distúrbios sexuais não interfere nem com o desempenho profissional, nem com a vida familiar que a pessoa, com o intuito de se integrar na sociedade, mantém.

Ser padre é das melhores profissões para um pedófilo por várias razões: Primeiro, os pedófilos não têm, em geral, atracção por adultos, e na sociedade normal sentem-se, tal como todos, pressionados a constituir família, e muitos fazem-no. A religião católica é neste ponto o paraíso dos esconderijos, não só não tem que manter relações amorosas com adultos, como nem pode. É perfeito; Segundo, a profissão de padre induz confiança total nos outros, principalmente nas famílias que frequentam a igreja, traz um poder que um pedófilo não usufruiria noutro contexto. Um poder tal que facilita o abuso. Os pedófilos sabem disso; Terceiro, o acesso fácil às crianças, através de colónias, de grupos de estudo, de actividades na igreja, a possibilidade de estar a sós com crianças com o consentimento absoluto dos pais. Melhor do que isto é impossível; Quarto, a religião católica funciona como uma irmandade secreta, ou seja, protege os seus mesmo quando estes infringem as regras. Os pedófilos sabem que poderão abusar de crianças e mesmo assim serem protegidos pela irmandade que tentará tudo para abafar os casos (proteger os irmãos para proteger a irmandade). E eles sabem disto há muito tempo, há séculos que assim é.

Mas, e isto é importante, apesar de a profissão de padre ser o paraíso dos pedófilos pelas razões acima referidas (e outras que só os próprios pedófilos conhecem), isto não significa que todos os padres sejam pedófilos. Obviamente. Há homens que escolheram o caminho religioso da igreja católica por vocação, por amor a Deus ou mesmo por amor à instituição religiosa. O facto é que as pessoas não podem ficar cegas aos sinais que as crianças transmitem, apenas porque confiam cegamente em alguém. Os padres não são representantes de Deus, pois não foi Deus que os nomeou directamente, os padres são representantes de uma instituição religiosa, cheia de muitos defeitos mesquinhos humanos como todas as instituições religiosas. Todas. E pessoas como os pedófilos sabem aproveitar-se desses defeitos.

Abaixo vejam um excelente documentário sobre o assunto, chamado Deliver Us from Evil (2006). Relata o caso verídico do padre católico Oliver O'Grady, ganhou o prémio de melhor documentário do Los Angeles Film Festival e foi nomeado para oscar de melhor documentário 2006.

6 comentários:

ntozei disse...

Muito bom o texto. Fez-me lembrar de uma conversa que tive uma vez com uma amiga sobre os abusos de parentes em crianças. Ela estava a defender a inocência de um certo pai, por acreditar que a criança diria à mãe se algum problema estivesse acontecendo. Qual foi meu espanto ao ver a incredulidade dela na realidade mais provável, mesmo dizendo a ela que a humanidade não era cor de rosa como ela pensava e que a criança às vezes tentou falar, ou foi ameaçada a não fazê-lo, ou não pensou que estivesse sendo abusada, ou nem teve espaço para tanto. Triste humanidade essa nossa, que permite caladamente, cegamente, por ignorância ou inocência, tais situações, resultantes de doença, distúrbio ou pura safadeza.

ecila disse...

ntozei, obrigada :-) Tens razao. As pessoas têm falta de informacao sobre psicologia infantil, de como as criancas reagem, comunicam, etc. A ignorancia é um perigo, talvez dos maiores que assolam a humanidade. Qualquer sinal é um alerta. E, a julgar pela minha propria infancia e adolescencia, estes disturbios e maldades sao muito mais comuns do que se imagina. Chegarmos à idade adulta ilesos é uma questao de sorte, nada mais. Tive sorte, mas sei que muitos nao tiveram. E sei também que calam esta realidade. O que leva à continuacao dos maus tratos (até mesmo na sociedade em geral, porque impunidade reforca o crime, claro). Tal como dizes, situacoes tristes :-(

jellyfish disse...

great text! such an unsettling subject...don't think I can bring myslef to watch the documentary....

ecila disse...

jellyfish, thank you :-) The documentary is not so hard to watch. For psychologists I would say a must watch, but also for everyone else to understand how important it is to be aware of alert signs coming from children/adolescents.

jellyfish disse...

It's not about how the movie it's made, I've seen my share of tough things. But here it's about the theme...one as dark as one can be. It's something that makes me rage inside. I remember watching a documentary on the central park attacks on women. When children are involved it is even harder to bare. It is an ungly truth and unfortunatelly there will always happen apalling things in this world, as long as power will continue to corrupt.

ecila disse...

jellyfish, yes you are right, it is a very hard theme to digest :-(